Foto: José Cipriano.
E tomara que seja mesmo como disseram: só para carroças, bicicletas, gente a pé. No máximo para uma ambulância aflita, para um desesperado carro de bombeiros. Apesar de todos os enervantes apertos que acontecem ali na outra, a de concreto, que essa de ferro fique num servicinho leve, de aposentada que ainda quer mostrar sua graça, uma ponte quase de brinquedo.
Falo da Ponte e me bate - agora pra valer - uma vontade que só por comodismo nunca satisfiz: a de percorrê-la andando. Pois vou tratar disso já - abandonar meu carro e minha pressa em qualquer canto, assumir a parte que, como filho de Deus, também me cabe nesse privilegiado camarote, soltar os olhos pelas lonjuras do norte, pelas lonjuras do sul, da mansa flutuação dos Ratones ao talhe imperial do Cambirela, sem os riscos de ser esmagado por qualquer das atarantadas máquinas paras as quais normalmente se fazem as pontes.
Vejam: tantas voltas deu o tempo que chegou o dia de a Ponte ficar assim só pra gente. Ela sempre foi tão ocupada, tão profissional, tão escrava dos motores...
A Ponte e a gente... Nos ermos da minha aldeia, falava-se que na capital havia uma ponte de ferro que atravessava o mar. Como eu não conhecia o mar (sabia apenas que era uma água sem fim), imaginava a Ponte como um mágico travessão unindo o nosso mundo firme a um mundo impreciso chamado ilha. Ouvi depois vozes irônicas dizerem que ela ligava o nada a coisa alguma.
De qualquer jeito, por longo tempo vivi a impaciência de vê-la.
Já falei um dia da pena que tenho dos que nasceram à beira do mar: eles não provaram a inexprimível sensação de descobrir o mar! De minha mulher, coitadinha, a pena é dupla: ela nasceu bem diante da Ponte, cresceu vendo-a todo dia , nunca soube o que é conhecer um mito desses aos treze, catorze anos. Boquiaberto sob as inquietantes colunas, tolo diante dos portentosos elos e correntes, temeroso com a água entrevista pelo vão das tábuas - vencer a Ponte naquele primeiro dia foi como ir à África.
Vou andar a pé pela Ponte, é só uma questãozinha de organização de tempo - e é preciso que esse tempo não seja avaro, se solte em longas demoras. O olhar não pode se incomodar com a mancha dos prédios na paisagem e o supremo prazer será pegar na saída um poente cheio do mais puro ouro catarina. A pé, curtindo cada passo, com a ternura de quem não pisa mas afaga, vou cuidar de ver se amiúdo uma amizade que já vem sem tempo.
Fique a Ponte, pelos séculos que hão de vir, para os pedestres, as bicicletas, as carrocinhas que ainda andam pelo mundo espalhando a repousada beleza das coisas simples.
Crônica de: Flávio José Cardoso, Senhora do meu Desterro, 1991.